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Gosto de arrumar a roupa por cores. Serei obsessivo-compulsivo?

Quando alguém gosta de arrumação, de ordem e de rotinas é muitas vezes catalogado como sendo uma pessoa obsessivo-compulsiva, mas a psiquiatra Célia Soares explica ao Viral que esta perturbação do foro mental vai muito além das características de uma personalidade mais organizada.

9 Nov 2023 - 10:09

Gosto de arrumar a roupa por cores. Serei obsessivo-compulsivo?

Quando alguém gosta de arrumação, de ordem e de rotinas é muitas vezes catalogado como sendo uma pessoa obsessivo-compulsiva, mas a psiquiatra Célia Soares explica ao Viral que esta perturbação do foro mental vai muito além das características de uma personalidade mais organizada.

Quando surgiram as primeiras notícias de que a Netflix estava a preparar a série documental sobre o ex-jogador de futebol David Beckham, que estreou no passado mês de outubro, o primeiro foco sobre a intimidade do antigo jogador do Manchester United e do Real Madrid a ter destaque foi a sua rotina diária em casa.

Enquanto a restante família dorme, Beckham diz que se levanta e percorre a casa para apagar as luzes, limpar as velas e arrumar a cozinha, ou seja, para deixar tudo em ordem. 

Ou melhor, na ordem que ele gosta, já que o próprio admite no documentário não ser do agrado da família uma organização tão metódica e também reconhece ser cansativo conviver com a perturbação obsessiva-compulsiva (POC).

Célia Soares, psiquiatra no Centro Hospitalar Conde Ferreira e no Centro de Medicina Digital P5, não analisa o comportamento do antigo jogador, mas, em declarações ao Viral, explica o que é esta perturbação e as diferenças que existem entre as pessoas que gostam de organização e as que sofrem com a POC.

Ter a casa sempre arrumada e a secretária do trabalho impecavelmente organizada é sinal de POC?

Gostar de ordem e arrumação não são sinais de que uma pessoa tem POC e a psiquiatra consultada pelo Viral começa por explicar que existem diferentes entidades a considerar neste âmbito da Psiquiatria. 

“Uma é a perturbação obsessiva-compulsiva, esse é o nome técnico para aquilo que é doença, que consideramos como desvio patológico e é alvo de tratamento”, outra é a chamada “perturbação de personalidade obsessiva ou anancástica que, neste momento, é também uma categoria diagnóstica e engloba as pessoas que têm uma personalidade com traços de rigidez e obsessividade e sendo um padrão que pode configurar algum sofrimento, eventualmente também pode ser alvo de tratamento, mais de cariz psicoterapêutico”.

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Depois, acrescenta Célia Soares, “existe o normal da personalidade de cada um. Quando falamos de uma pessoa que gosta de ter as coisas arrumadas, não há razão para pensarmos que pode ser uma condição de saúde se isso não causar sofrimento ao próprio ou a terceiros”.

“Todos temos a nossa personalidade e isso não é patológico, só é considerado patológico quando causa sofrimento para a pessoa ou para o outro, sustenta.

Qual a diferença entre POC e personalidade anancástica?

Sobretudo, o que diferencia a perturbação, que é a doença, da personalidade são os sintomas associados. 

“Na personalidade anancástica os sintomas são chamados egossintónicos. Isto é, a pessoa costuma conviver muito bem com eles. Tem uma apetência para a ordem, para a organização e que isso é consonante com aquilo que são os seus valores, com a sua forma de ser e não costuma causar desconforto nem sofrimento, embora possa acontecer”, explica Célia Soares.

Já no caso da POC, os sintomas são egodistónicos, ou seja, provocam grande sofrimento, não estão de acordo com os valores da pessoa e são motivo de grande angústia e vergonha. 

“É uma doença tipicamente do adulto jovem e, por estar muito associada a sentimentos de vergonha, é frequente existir um atraso no diagnóstico, que pode ir até 10 anos desde o início dos sintomas, porque as pessoas tardam em procurar ajuda, muito embora a situação tenha melhorado nos últimos anos”, explica a especialista.

Quais são os sintomas da POC?

A POC consiste, como a própria designação indica, na presença de obsessões e/ou compulsões que podem existir separadas ou em conjunto.

As obsessões existem ao nível mental, são “pensamentos, impulsos ou imagens que são intrusivos, ou seja, aparecem na mente da pessoa sem ela os procurar ou querer e isso perturba-a porque ela própria os considera como absurdos”, esclarece a psiquiatra.

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Já as compulsões são atos, mentais ou motores, repetitivos que a pessoa se sente forçada a executar “com o objetivo de diminuir a ansiedade causada pelos pensamentos, mas que, todavia, são ineficazes”.

As obsessões e compulsões podem ser muito variadas, mas podem agrupar-se em três grandes categorias: limpeza, verificação e ordem e/ou simetria.

Célia Soares elucida com um exemplo: “Se a pessoa tem uma obsessão com a contaminação, pensa que está suja, a esta obsessão está associada a compulsão de limpeza, ou seja, ela vai desinfetar ou lavar muitas vezes as mãos”. 

A situação, assegura a psiquiatra, “causa grande perturbação porque, racionalmente, a pessoa sabe que não está contaminada, no entanto, não consegue travar esse pensamento, fica muito ansiosa e ao procurar uma forma de resolver essa ansiedade surge a compulsão, o comportamento. Só que não é eficaz, porque a pessoa repete o comportamento inúmeras vezes, passa horas no banho, mas nunca se sacia. Causa um sofrimento muito grande, pois sente-se presa nesta dinâmica circular de obsessão-ansiedade-compulsão e pode deprimir. Muitas vezes, é só quando chega a essa fase que procura ajuda”.

As obsessões de ordem e simetria, em que tudo tem de estar muito simétrico, levam à compulsão da precisão e organização, as de obsessões de dúvida levam à dificuldade na toma de decisões ou à compulsão de verificação e depois existem categorias “mais difíceis de identificar e de valorizar pelo próprio”, reconhece a psiquiatra, nomeadamente as questões ao nível das obsessões de cariz sexual ou violento por exemplo. 

Há fatores de risco para desenvolver POC?

“Como em todas as doenças mentais, é sempre uma relação entre os fatores genéticos e os fatores ambientais”, lembra a especialista.

Embora as causas da doença não sejam totalmente conhecidas, está identificado que ter parentes em primeiro grau – pais ou irmãos – com POC aumenta o risco de desenvolver esta perturbação e estudos com imagens radiológicas também apontam para que as pessoas com POC tenham diferenças estruturais no córtex frontal e nas estruturas subcorticais do cérebro, as áreas que controlam o comportamento e as respostas emocionais.

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Depois, como sublinha Célia Soares, os fatores ambientais, em particular “o contexto em que crescemos e fomos educados, eventualmente em modelos rígidos e indutores de culpa, as relações que estabelecemos com os progenitores, as relações que estabelecemos ao longo da vida e os contextos de stress que vamos vivendo desempenham um papel fundamental [na saúde mental]”.

“As teorias cognitivas, mais ligadas à Psicologia, referem encontrar nas pessoas com POC uma estrutura cognitiva em que existe nuclearmente um medo grande da perda de controlo, uma hipervigilância a sinais de erro, uma tendência a sobrestimar consequências negativas do que fazem e do que pensam e um auto-questionamento constante sobre se terão cometido algum erro”, refere ainda a especialista. 

Questionada sobre se uma pessoa com perturbação de personalidade anancástica tem maior risco de desenvolver POC, Célia Soares diz que “não é um fator de risco, mas é uma estrutura de pensamento que pode vulnerabilizar para o desenvolvimento de POC”.

A POC tem cura?

Em termos de tratamento, existem diversas estratégias para o acompanhamento das pessoas com POC, mas, reconhece a psiquiatra, é comum os quadros de perturbação ganharem contornos de doença crónica, ou seja, a doença tem momentos de atividade e momentos de remissão, em que a pessoa está mais controlada. 

Numa primeira linha terapêutica, o que se recomenda “é iniciar com terapia cognitivo-comportamental e com medicamentos, nomeadamente antidepressivos da classe dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina”, que podem ser usados isoladamente ou em associação.

“Pensamos que o mais eficaz é serem usados em conjunto pelo efeito sinérgico, ou seja, a terapia potencia o efeito da medicação e a medicação potencia o efeito da terapia”, explica Célia Soares.

Segundo assegura a psiquiatra, a maioria das pessoas com POC responde a esta primeira linha de tratamento. 

Contudo, um pequeno grupo, com quadros mais graves da doença, pode necessitar de outras abordagens, umas mais invasivas – como a psicocirurgia ou a estimulação cerebral profunda, que usa impulsos elétricos para estimular diretamente locais no cérebro – outras menos invasivas, como a estimulação magnética transcraniana, que utiliza um íman para fornecer impulsos repetidos de baixa intensidade e assim estimular uma parte específica do cérebro associadas à POC.

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Célia Soares fez questão de rematar frisando que, sendo uma doença crónica, “não quer dizer que a pessoa está sempre doente, há períodos em que está bem. Mas, em momentos de maior stress, é comum piorar e, nesses momentos, é necessário ser tratada para voltar ao equilíbrio”. 

A psiquiatra reconhece mesmo que “é muito gratificante trabalhar com estas pessoas e ver a evolução que têm, às vezes com estratégias muito simples”.

9 Nov 2023 - 10:09

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